Sr. Ilídio



O som ecoava por toda a rua. Marcava a cadência do levantar. Criava uma imagem de Kentucky no canto da boca ao mesmo tempo que a martelada no sapato marcava a sinfonia matinal. Parecia que toda a rua se deixava levar pela musicalidade do momento. Seis da manhã. Outro som se intrometia. Pelo toque do líquido nas latrinas de metal, todos se preparavam para o leite. Ainda hoje oiço o som. Mas era a tosse do Sr. Ilídio que se sobrepunha.

Antigo jogador de futebol, como seria fácil de constatar pelo arqueamento das pernas, Ilídio tinha aquele sorriso que motivava uma graça mas também uma ternura de um tipo que sempre relembramos. Depressa inventou uma locomoção para o triciclo que me movia da Travessa da Rua do Maia até ao Assento. Sempre com o seu Kentucky no canto da boca, empurrava-me com um pau bifurcado na ponta que permitia, simultaneamente, o emprego da força adequada à relação peso-potência e à insinuante deslocação pelo paralelepípedo.
De regresso à sua oficina, Ilídio procedia ao batimento generoso de um sapateiro afamado porque sabia que um sapato depois de ir ao sapateiro renasce na sua dignidade. Melhor, adquire outra dignidade.
O problema existencial residia no engarrafamento.
O engarrafamento do vinho era festivo. As garrafas, predispostas para a ocasião, engalanavam-se para receber o chumbo que as purificava dos resíduos anteriores. Lá estava o pipo e a respectiva bicha. O tal problema residia na iniciática inspiração do conteúdo do pipo para depois introduzir na garrafa para aonde o vinho descia feliz. O meu pai, zeloso pela tarefa desempenhada, cumpria com profissionalismo, facilmente constatável pelas garrafas que ia somando; Sr. Ilídio, desejoso de afogar o sabor do Kentucky, não enchia qualquer garrafa apesar do vinho seguir feliz.
Na ingenuidade de um miúdo, para quem o mundo inteiro era aquele, sentia-me feliz pela presença do Sr. Ilídio. Contudo, sabia uma coisa acerca do Sr. Ilídio: a felicidade e a infelicidade não faziam parte do seu léxico existencial. Era, simplesmente, a vida.



António Daniel

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