Bichos

Bichos




Apesar do título ser o mesmo, não pretendo fazer uma incursão pelos textos de Torga. Os seus eram transmontanos, os meus eram minhotos. Sob a alçada do título joga-se a universalidade mas, convenhamos, e desculpem a presunção, há particularidades regionais. Um cão transmontano não ladra, morde. Um minhoto ladra, mas não morde. Assim eram os meus bichos. Todos tinham em comum a designação de Pelé assim como a ausência de título nobliárquico.
Vamos ao primeiro Pelé. Foi uma existência fugaz. Pelo curto, mancha sobranceira castanha, rasteiro no cheiro e estridente no afecto, acompanhava sempre as andanças, mas rapidamente deu a conhecer ao puto, seu dono, a efemeridade da existência. Não latiu, caiu. O poder paternal rapidamente quis apaziguar a angústia do juvenil. Um novo quadrúpede já vinha a caminho. Também com pelo curto, também com a mancha castanha, também a mesma forma estridente das afeições. Quase, quase que a sua existência era fugaz. Ficou-se pela perna partida. Toda a sua longa vida foi marcada pelos saltinhos, com a pata direita a baloiçar como se continuasse a agradecer a sorte que lhe coube. Sempre foi de um agradecimento estonteante. A chegada de alguém a casa era presenteada por uma correria trípode, com um sonoro e histriónico ladrar e com a arrependida lambidela sequente. A velhice chegou, sempre com o mesmo andar trípode, mas cada vez mais trôpego. Enquanto o primeiro Pelé deu ao puto a noção da morte, o segundo deu-lhe a noção da velhice. A sua sonora presença foi substituída por um monossílabo, beneficiando contudo pela cada vez maior definição carinhosa do seu olhar. Foi assim que o Pelé II morreu, a olhar.Abro um parêntesis para falar de um outro Pelé, contemporâneo deste último e seu grande rival no que diz respeito às necessárias partilhas. Este Pelé, para diferenciar, era o Pelé Preto. Vagabundo, era de todos e de ninguém. Tinha a sua caminhada definida pelo ritmo quotidiano da minha mãe ou de outro familiar, desde que isso significasse passar pelo Talho Novo onde um delicioso bife o esperava. O Pelé Preto deu ao puto a lição da vida. Finalmente, o último Pelé. Nascido de uma relação proibida, pelo cruzamento de uma caniche bem nutrida e de um pouco nutrido rafeiro, veio ao mundo filho único, como único era o seu estar e ser. A sua vida era correr, ladrar e beijar, se bem que esta última característica se sobrepusesse às restantes, mesmo para os desconhecidos. Caracterizava-se por uma espécie de romaria de Agosto, muito foguetório e muita generosidade. Aliás, generosidade é pouco, pois era superlativo na dádiva e no gosto que tinha pelo puto que entretanto se tornara homem. Este Pelé deu ao homem a lição da eterna juventude. Morreu e o homem não viu. Mostrou ao homem que a morte é uma grande puta.

António Daniel

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